sábado, 25 de agosto de 2018

Somos Importantes Para Deus?


Somos Importantes Para Deus?
Rolf Höneisen

Deus vê tudo, Deus sabe de tudo… mas ele de fato se importa conosco?
Em nosso planeta vivem bilhões de pessoas que foram criadas, desejadas e que são vistas pelo Criador. Diante dos acontecimentos no mundo e de situações pessoais, muitos se questionam: “Será que temos alguma importância para Deus? Ele de fato se importa conosco?”.
Há muitas centenas de anos, um homem olhou para o céu estrelado. Ao ver aquilo, surgiu nele uma pergunta: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que ali firmaste, pergunto: Que é o homem, para que com ele te importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes?” (Sl 8.3-4).
Enxergar o céu estrelado na Europa deixou de ser algo óbvio. A causa é a crescente “poluição luminosa”. Há pouco tempo, astrônomos apresentaram dados incríveis: na Europa Ocidental quase ninguém consegue observar um céu estrelado claro. 99% da população dos EUA e da Europa Ocidental está impedida de ver o céu estrelado claro por causa da luz artificial ofuscante das cidades, povoados e ruas. A claridade artificial engole a luz das estrelas ao fundo.
A metade dos habitantes europeus e dois terços dos norte-americanos não conseguem mais enxergar a olho nu a constelação junto da Via Láctea por causa da luz artificial. Os habitantes das cidades não conseguem mais ver as estrelas. Painéis luminosos e iluminação pública os atrapalham. Além disso, também lhes falta aquele sentimento de veneração que outrora levou o salmista a ficar extasiado diante do Criador do universo.
Os astrônomos esclarecem que o nosso Sol é apenas um dos cinco bilhões de outros sóis de nossa Via Láctea. As estrelas na verdade são sóis. Nossa Via Láctea não é uma galáxia com grandeza especial. Ela é apenas uma entre 200 bilhões de galáxias. Essas galáxias, por sua vez, também estão repletas de estrelas. – Será que uma pessoa isoladamente, estando num pequeno planeta de um pequeno sistema solar de uma galáxia medianamente suntuosa, pode afinal ter algum significado diante do Criador de todo o universo?
No final do ano 2000 nasceu um bebê nos EUA. Ele foi gerado em laboratório. Nesse embrião gerado, quando ainda estava no estado de célula, foi testada a substância hereditária. Então este foi selecionado, pois era o embrião que tinha o tipo de células da medula óssea mais compatível e que era urgentemente necessário para sua irmã de 6 anos de idade. Esse embrião foi selecionado. Ele pôde continuar vivo e foi implantado em sua mãe.
Um pôde viver; um entre 13, pois preventivamente haviam sido colocados no tubo de reagentes outros 12 embriões para posterior escolha. Eles foram fecundados e então testados – finalmente foram descartados por serem inadequados. Eles não puderam continuar vivos.
O que Deus pensa sobre isso? Deus considera esses embriões apenas como meras células ou elas são importantes para ele – elas não já possuem todo o potencial da pessoa em crescimento que Deus imaginou para as células embrionárias?
Deus criou o homem à sua imagem, é o que lemos no relatório da criação. Em 2013, estima-se que no Brasil foram apagadas entre 687 mil a 860 mil vidas ainda antes de terem nascido, por abortos provocados [Estadão, 21/08/2015]. O que Deus sente por elas? Elas são importantes para ele? Nós somos importantes para ele?
Quando o povo de Israel estava escravizado no Egito e era obrigado a prestar serviços forçados, ficava difícil imaginar que Deus estivesse se importando por eles e que a situação pudesse mudar algum dia. Assim, eles mal tinham forças para acreditar que aquilo que Moisés lhes prometia reiteradamente pudesse realmente se cumprir.
Os amigos de Jó se divertiam com a sua suposição, de que ele pudesse ter algum significado para o Criador do universo.
O autor do livro de Eclesiastes questionou radicalmente se, afinal, haveria algo sob o Sol que tenha algum significado. Ou, no final, tudo é sem sentido?
A minha vida tem algum significado? Afinal, Deus faz o que ele quer... A minha vida de fé tem algum significado... de qualquer modo haverá um golpe baixo depois... O que fazemos com tais sentimentos? O que podemos fazer quando estamos deprimidos, desanimados ou desesperados? Deus nos dá alguma resposta sobre isso?
No antigo livro do profeta Isaías, capítulo 49 versículo 16, consta uma frase que é muito usada em cartões postais e pôsteres: “Veja, eu gravei você nas palmas das minhas mãos”, ou: “Vejam, escrevi seu nome na palma de minhas mãos”.
Essa frase consta na lista de versículos bíblicos favoritos. No entanto, ela adquire sua força somente quando compreendemos para quem Deus disse essa frase e em que situação se encontravam essas pessoas: Deus falou essas palavras para o povo de Israel quando este estava no pior estado – em depressão. A terra de Canaã estava destruída. Os soldados babilônicos haviam invadido o santuário. O templo foi profanado, a capital arrasada, a terra incendiada. As pessoas com capacidade produtiva foram levadas, em grupos acorrentados, para a Babilônia. – Era o período do cativeiro babilônico.
O Salmo 137 descreve o sentimento das pessoas naquela ocasião: “Junto aos rios da Babilônia nós nos sentamos e choramos...” (v. 1). Havia uma grande questão atormentando o povo de Israel em prantos: “Ainda temos alguma importância para Deus?”. – “Isso é a consequência de pertencer ao povo de Deus, esse é o resultado quando se crê em Deus?”
“Não se vendem cinco pardais por duas moedinhas? Contudo, nenhum deles é esquecido por Deus. Até os cabelos da cabeça de vocês estão todos contados. Não tenham medo; vocês valem mais do que muitos pardais!” (Jesus Cristo).
Em todos esses séculos da história da igreja as pessoas crentes estavam e estão constantemente diante dessa questão: os huguenotes da França, os anabatistas à época da Reforma, os cristãos sob o comunismo, no Sudão, na China, no Afeganistão, nos países árabes, etc. Para esses, a questão era e é de cunho existencial: somos importantes para Deus? Ele ainda se importa conosco?
A constante pressão sobre os israelitas era tão imensa na Babilônia que eles haviam perdido todas as esperanças. “Não!”, diziam eles: “O Senhor me abandonou, o Senhor me desamparou” (Is 49.14). Esse é o fim de um relacionamento. É catastrófico precisar afirmar: “Sim, há anos eu imaginava que conhecia a Deus. Agora, porém, nessa situação, quando estou há anos pedindo a ajuda de Deus, sem êxito, preciso dizer: Deus se esqueceu de mim”! Isso significa rendição espiritual. Isso é o vazio total, escuridão amedrontadora, desesperança opressora, profunda decepção. Ali houve uma ruptura no relacionamento.
A partir desse ponto, em Babel, num momento determinado por ele, Deus começou novamente a falar com seu povo. Após o “não” de Israel, Deus primeiramente lhes formula uma pergunta retórica com uma figura baseada na criação: “Haverá uma mãe que possa esquecer seu bebê...?” (Is 49.15a). Uma mulher consegue algum dia esquecer alguém nascido dela? Pode-se rejeitar um filho, expulsá-lo de casa, romper o contato com ele reciprocamente – sim, isso é possível –, mas, mesmo assim, uma mãe não esquecerá de seu filho. Usando esse sentimento, Deus compara perguntando: “Embora ela possa esquecê-lo, eu não me esquecerei de você! Veja, eu gravei você nas palmas das minhas mãos; seus muros estão sempre diante de mim” (Is 49.15b-16a).
Deus não quer (!) esquecer seus filhos. Para reforçar sua decisão e torná-la compreendida, ele usa essa figura impressionante: se uma pessoa se tornou filho de Deus mediante a fé e teve um novo nascimento de espírito graças ao perdão recebido em Cristo, então ela pertence a Deus da mesma maneira como os traços pertencem a uma mão. E isso não ocorre por mero acaso, mas pela vontade de Deus, por meio da sua intervenção ativa: Deus grava na palma das mãos dele aqueles que nele creem, confiam e obedecem. Sua vida está nas mãos dele.
Essa ação de Deus é uma expressão da sua graça. Uma pessoa crente pertence a ele mesmo se ela não sentir a presença dele. “Que aquele que anda no escuro, que não tem luz alguma, confie no nome do Senhor e se apoie em seu Deus” (Is 50.10). Deus está presente, mesmo no vale das trevas, da aflição, de não ver saída.
Na época da escravidão na Babilônia, sem qualquer perspectiva para Israel, Deus começou a dar uma resposta para o povo com relação à salvação. Ela aparece como um facho de luz penetrando na escuridão. Deus anunciou algo novo. Ele falou que viria um “servo de Deus”. Essas profecias aparecem concentradas nos capítulos 42 a 53 do livro de Isaías. É profecia divina de alto quilate. Ela aponta para a vinda do Messias. É a resposta de Deus para aqueles que o procuram.
Deus descreve esse Salvador como sendo um “homem de dores”, desprezado e rejeitado pelos homens. Assim como foi naquela época, ainda hoje isso continua sendo incompreensível para muitos. Em todo o caso, Deus coloca em jogo seu atributo de ser onipotente. Nessa ocasião, Deus revelou um plano para Isaías e Israel que contém muito mais ânimo, mais criatividade e mais disposição de sacrifício do que uma pessoa possa ter. É um plano que liquida com nossa capacidade de imaginação. Ele nunca poderia ter sido planejado por pessoas: há 2.700 anos, quando Israel se lamentava na Babilônia, Deus declarou estar disposto, algum dia, a viver entre os homens.
Deus se importa pelos que estão dedicados à morte. A mensagem de Natal é atual. Deus se tornaria homem. Ele assumiria nossas enfermidades e levaria sobre si as nossas dores. Ele seria traspassado e moído por causa de nossa culpa. Essa foi a resposta de Deus para o sofrido Israel.
Como Deus viria? Isaías 7.14: “A virgem ficará grávida, dará à luz um filho e o chamará Emanuel [Deus conosco]”. Deus não viria até os homens na forma de tornado ou tormenta de fogo, mas na forma humana mais indefesa possível: como célula, embrião – como feto que cresce, célula por célula, no ventre de uma mulher e finalmente abandona o seu corpo na forma de um bebê, para compartilhar a vida com os moradores da terra nesse minúsculo planeta.
O Filho de Deus viveu na terra entre nós durante 33 anos, tendo a experiência do que significa ser uma pessoa. Uma pessoa como nós, para que “libertasse aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados pelo medo da morte” (Hb 2.15).
“Somos importantes para Deus?” Jesus respondeu claramente a essa pergunta, uma vez por todas, com sua vida e morte. Ele é – conforme Colossenses 1.15 – a imagem do Deus invisível. Por meio do Filho podemos ver o Pai.
Como Jesus descreveu a Deus:
Certa vez Jesus comparou Deus a um pastor que deixa 99 ovelhas no curral e vai incansavelmente à procura de um único animal errante.
Outra vez Jesus comparou Deus a um Pai que não desiste de pensar de seu filho ingrato, mesmo que ainda tivesse um filho bem-sucedido em casa (ver Lc 15).
E outra vez Jesus comparou Deus a um rico hospedeiro, que não se envergonha em receber um grupo de figuras degradadas no seu salão de festas (ver Lc 14.21-24).
Com esses exemplos, Jesus nos mostra o caráter do Deus invisível: Deus não ama as pessoas em função da sua raça, reconhecimento ou aparência, mas porque são suas criaturas. As pessoas são importantes para Deus. Deus nos trata com tanta consideração que ele demonstra toda a sua atenção pessoal. Ele submeteu seu amor à comprovação. Por isso ele se empenhou ao máximo, primeiramente nas colinas e estradas da Galileia e finalmente no madeiro da cruz, em Jerusalém.
Jesus personifica aquilo que o profeta Isaías profetizou: Jesus veio ao mundo como servo. Não havia lugar para ele. Ele foi rejeitado e abandonado por todos. E foi justamente com isso que ele consegue nos demonstrar que mesmo a pessoa mais insignificante da terra não se perde se, pela fé, ela estiver assinalada na palma da mão de Deus. O seu nome então estará gravado em um dos traços da mão de Deus.
No Salmo 102.16-23, lemos: “Porque o Senhor reconstruirá Sião e se manifestará na glória que ele tem. Responderá à oração dos desamparados; as suas súplicas não desprezará. Escreva-se isto para as futuras gerações, e um povo que ainda será criado louvará o Senhor, proclamando: ‘Do seu santuário nas alturas o Senhor olhou; dos céus observou a terra, para ouvir os gemidos dos prisioneiros e libertar os condenados à morte’. Assim o nome do Senhor será anunciado em Sião e o seu louvor em Jerusalém, quando os povos e os reinos se reunirem para adorar ao Senhor. No meio da minha vida ele me abateu com sua força; abreviou os meus dias”. O plano de salvação de Deus trata da vida de cada pessoa individualmente, mas também das nações do mundo. Ele pretende originar uma nova geração de pessoas, que vive e age a partir do relacionamento com Deus.
O plano de salvação de Deus trata da vida de cada pessoa individualmente, mas também das nações do mundo. Ele pretende originar uma nova geração, que vive e age a partir do relacionamento com Deus.
O salmista, já em sua época, previu a futura salvação dos infelizes. As futuras gerações louvariam ao Senhor quando ouvissem de como ele olha a partir do céu (o santuário no céu) e ouvisse o choro de seu povo sobre sua situação lastimável. Em vários salmos é ressaltado que Deus, em sua onipotência, dirige o olhar sobre seu povo. Esse fato confirma o quanto Deus se importa pelo seu povo. O Senhor com frequência interferiu para salvar aqueles que estavam próximos da morte. Como consequência dessa salvação, o nome do Senhor seria exaltado quando todas as pessoas se reunissem em Sião para louvá-lo.
Jesus nunca tentou explicar filosoficamente o problema do sofrimento humano. Ele também não esclareceu por que ocorrem determinados acontecimentos graves. Uma coisa, no entanto, podemos aprender dele – isto é, saber o que Deus sente e pensa sobre acontecimentos graves. Jesus também personifica o Deus invisível – quando em sua face surgem lágrimas diante da culpa dos homens.
Isaías profetizou isso: “Certamente ele tomou sobre si as nossas enfermidades e sobre si levou as nossas doenças; contudo nós o consideramos castigado por Deus, por Deus atingido e afligido. Mas ele foi traspassado por causa das nossas transgressões, foi esmagado por causa de nossas iniquidades; o castigo que nos trouxe paz estava sobre ele, e pelas suas feridas fomos curados” (Is 53.4-5).
É a morte sacrificial de Jesus que perdoa nossa culpa, que derruba o muro que nos separa de Deus. Nada além da sua graça nos justifica. O perdão da culpa novamente nos torna “inteiros” diante de Deus.
O texto de Isaías 49, que trata da aceitação e restauração de Israel e Jerusalém, nos versículos 16-17 diz: “Veja, eu gravei você nas palmas das minhas mãos; seus muros estão sempre diante de mim. Seus filhos apressam-se em voltar, e aqueles que a despojaram afastam-se de você”.
A uma pessoa que aceitou o perdão e que crê em Cristo, Deus considera como “inteira”, como restaurada, como salva, como curada, como nova. Os “muros estão sempre diante de mim”... reconstruídos com novas forças, repletos com o Espírito de Deus. Ali onde a Palavra e o Espírito de Deus governam, aquilo que é destrutivo precisa ceder. É esse o processo da cura, da santificação, porque Deus gravou você na palma de suas mãos.
A conturbada história do povo de Deus nos ensina: Deus não se afasta dos seus filhos. Somos nós mesmos que nos afastamos de Deus...
... por culpa não resolvida
... por relacionamentos tratados sem amor
... por falta de fé
... por esperteza de nossa parte
... por impaciência
... por desconfiança
Antes que possamos experimentar a nova força recebida de Deus, precisamos novamente nos conscientizar sobre quem é nosso Deus. Precisamos nos examinar. Dependendo do caso, é necessário confessar culpas, esclarecer falhas, acertar os relacionamentos em qualquer nível, reconhecer a hipocrisia e falsas concepções – em sinal de veneração diante de Deus e por amor ao próximo.
Desconfiança e incredulidade revelam uma falsa imagem do Onipotente. As palavras que Deus falou para Israel foram dramáticas: “Quando eu vim, por que não encontrei ninguém? Quando eu chamei, por que ninguém respondeu? Será que meu braço era curto demais para resgatá-los? Será que me falta a força para redimi-los?” (Is 50.2).
Jesus nos revela o caráter de Deus. Ele veio para dar sua vida por nós. Nós não estamos sós, muito menos somos esquecidos. Quem está disposto a receber a Palavra de Deus e o seu amor? Eu agora posso confiar que sou importante para Deus. Posso dirigir-me confiadamente a ele – para longe de mim, de minhas fraquezas e minhas impossibilidades, ao Deus com ilimitadas possibilidades.
Jesus veio para libertar as pessoas da prisão da morte. Ele se importa conosco muito além da vida cotidiana. Por isso ele pôde dizer aos seus discípulos: “Eu digo a vocês, meus amigos: Não tenham medo dos que matam o corpo e depois nada mais podem fazer. Mas eu mostrarei a quem vocês devem temer: temam àquele que, depois de matar o corpo, tem poder para lançar no inferno. Sim, eu digo a vocês, a esse vocês devem temer. Não se vendem cinco pardais por duas moedinhas? Contudo, nenhum deles é esquecido por Deus. Até os cabelos da cabeça de vocês estão todos contados. Não tenham medo; vocês valem mais do que muitos pardais! Eu digo a vocês: Quem me confessar diante dos homens, também o Filho do homem o confessará diante dos anjos de Deus. Mas aquele que me negar diante dos homens será negado diante dos anjos de Deus” (Lc 12.4-9).

sábado, 4 de agosto de 2018

A Herança dos Anabatistas


A Herança dos Anabatistas

Rolf Sons
Muitos já ouviram falar da Reforma de Zurique, e do seu fundador Ulrico Zuínglio. Muitos, porém, não sabem que, ao mesmo tempo, ocorreu mais um movimento espiritual em Zurique e que inicialmente Zuínglio o apoiava.
Trata-se dos chamados anabatistas. “Chamados” aqui é empregado literalmente, porque eles na verdade, a princípio, não se chamavam assim. Do mesmo modo, inicialmente os cristãos não se chamavam de “cristãos”, mas eram assim denominados por outras pessoas (At 11.26).
A exemplo dos reformadores, esses anabatistas pretendiam renovar a igreja. “Reformador” significa “renovador” e não fundador de igreja. No entanto, como é notório, tudo aconteceu de maneira diferente. Também aconteceu de modo diferente do que os anabatistas o imaginaram.
Assim como os reformadores, eles queriam trazer a desviada Igreja Católica de volta ao evangelho. Um aspecto nesse sentido era o batismo.
Antes que o cristianismo se tornasse a igreja estatal romana, os crentes não batizavam bebês. A Bíblia demonstra que o batismo está vinculado à decisão consciente de seguir a Jesus – um bebê não consegue tomar essa decisão. Os reformadores igualmente se preocupavam com essa questão. Alguns afirmam, por exemplo, que o próprio Lutero estava muito próximo de aceitar o batismo pela fé. No final, porém, ele permaneceu adepto ao batismo infantil, assim como Zuínglio.
Assim, não demorou muito para que surgissem opiniões diferentes. Para os reformadores, bem como para os católicos, os anabatistas praticavam o “duplo batismo”, pois, na opinião deles, eles batizavam novamente as pessoas. No entanto, nesse aspecto eles consideravam o batismo que praticavam como o “correto”, porque o batismo de bebês para eles não era considerado como batismo. Essa era uma diferença significativa diante da maioria dos reformadores, mas de longe não era a única.
Com essa inovação, os anabatistas pretendiam avançar em diversas áreas, mais do que Zuínglio, Lutero e os demais reformadores. Eles pretendiam viver assim como Jesus viveu com seus discípulos e as mulheres que o seguiam, e como os primeiros cristãos em Jerusalém.
Para os reformadores, bem como para os católicos, os anabatistas praticavam o “duplo batismo”, pois, na opinião deles, eles batizavam novamente as pessoas.
Outro tema dos anabatistas era a vida comunitária, com o uso comum de bens. Isso significava ter tudo compartilhado ao invés de propriedades privadas. Para a Igreja Católica Romana daquela época, isso representava um grande desafio. Ela possuía muitas propriedades, como extensas áreas de terra, por exemplo. Sim, ela era muitíssima rica e, como o jovem rico da Bíblia, não queria se desfazer de sua riqueza. Os reformadores não tinham as mesmas exigências; no entanto, eles também não queriam abrir mão totalmente de posses em geral.
A riqueza e o poder a ela relacionada é uma grande tentação. Muitas pessoas já foram vencidas por ela. Por isso, os anabatistas não queriam cair nessa tentação e optaram conscientemente por um estilo de vida mais simples e modesto. Para eles, ocupar um cargo ou uma posição de liderança não era primordialmente uma posição de poder, mas de serviço, como o Senhor falou: “O maior entre vocês deverá ser servo” (Mt 23.11). Esse modo de pensar era fortemente contrário ao pensamento geralmente aceito. Esse modo de vida e a declaração a seguir de Jesus conduziram à seguinte conclusão:
“Meu reino não é deste mundo” – isso Jesus também havia falado. Por isso os anabatistas pretendiam estabelecer uma estrita divisão entre igreja e estado. Podemos observar que Jesus realmente transformou o mundo, mas que para isso não utilizou a via política. Ele nunca se envolveu em questões políticas polêmicas, nem mesmo na questão da opressão exercida pelos romanos. Ele também não aceitou a provocação, por exemplo, quando o assunto era o dos impostos: “... deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22.21), ele falou. O Senhor agiu assim, mesmo sabendo que com o dinheiro desses impostos o domínio dos romanos seria ainda mais fortalecido. Em minha opinião, pode-se dizer que Jesus viveu separando a igreja do estado.
Os anabatistas pretendiam estabelecer uma estrita divisão entre igreja e estado.
A Igreja Católica, no entanto, tinha fortes pretensões de poder. Ela se considerava como a instância mais elevada da terra. Por isso, o papa era então a única pessoa que poderia coroar um rei.
Os reformadores não compartilhavam essas ideias de exercer o poder. Eles, no entanto, procuravam trabalhar em conjunto com as autoridades para, em caso de necessidade, aproveitar seu poder e força; também na área militar – como podemos ver no exemplo de Zuínglio, com as guerras de Kappel. Aqui chegamos a mais uma diferença em relação aos anabatistas:
Jesus havia dito: “Amem os seus inimigos” (Mt 5.44). Não se ama o inimigo matando-o. Os primeiros cristãos estavam muito conscientes disso. Nos primeiros 200 anos, praticamente não se via nenhum cristão ingressando nas forças armadas. Ao contrário, sabe-se de casos em que cristãos daquela época foram martirizados porque se recusavam a servir como soldados.
Somente após Constantino, o Grande, e o seu lema: “Com esse sinal vencerás” (o sinal da cruz), o exército e o serviço militar passaram a ser “socialmente aceitos” por muitos cristãos. Hoje poderíamos questionar: será que os ensinamentos de Jesus mudaram? Os primeiros cristãos estavam errados?
Com o passar dos séculos a igreja passou a se afastar mais e mais das diversas doutrinas de fé da Bíblia. A Igreja Católica logo enriqueceu e estava empenhada pelo poder. Com essa mentalidade de poder muitos fundamentos bíblicos foram abandonados até que, na Idade Média, esses posicionamentos errados ficaram evidentes. As pessoas então tornaram-se dispostas a ouvir os renovadores que pretendiam eliminar esses equívocos.
A ideia de não reagir dos anabatistas ainda continuava. Eles também não queriam levar ninguém diante de um tribunal mundano. Paulo escreveu: “Acaso não há entre vocês alguém suficientemente sábio para julgar uma causa entre irmãos?” (1Co 6.5). Eles não consideravam esse versículo somente em relação a irmãos, mas também de tal maneira que um cristão não deveria procurar ser julgado por um juiz incrédulo.
Os anabatistas não reagem com violência quando são roubados, mesmo que isso causasse a eles muito prejuízo durante a sua história. Quando ouvi falar nisso pela primeira vez, pensei: “Não há como sobreviver duas semanas nessas condições”. Nesse meio tempo, no entanto, descobri e pude verificar pessoalmente que justamente os anabatistas nos EUA não apenas sobrevivem nessas condições, mas se sentem muito bem. Isso é algo notável, principalmente porque os EUA são conhecidos como um povo muito rápido em acusar e levar outras pessoas a juízo.
Onde, então, temos nossa proteção? Em quem ou em que temos mais confiança? Teríamos condições de sobreviver sem a proteção de soldados e de armas?
No Antigo Testamento, Israel foi muitas vezes ameaçado por exércitos poderosíssimos. Os israelitas então clamavam ao Senhor. E o que ele fazia? Numa ocasião, ele enviou um anjo que, em uma noite, matou um exército de 185.000 soldados (2Rs 19.35). Noutra ocasião, mediante a interferência do Senhor os inimigos de Israel mataram-se entre si (2Cr 20). “Pois a batalha não é de vocês, mas de Deus” (2Cr 20.15). Nesses casos, os israelitas nem precisaram lutar. E nós, ainda cremos que ele faça isso hoje? Cremos que Deus faria isso por nós?
Hoje a maioria dos anabatistas “clássicos” vivem na América do Norte: no Sul do Canadá e no Norte dos EUA. Após vários séculos de perseguições sangrentas, encontraram a paz ali. Não sabemos a quantidade exata deles. Sabe-se que são em torno de algumas centenas de milhares os que mantiveram seu patrimônio de fé anabatista até os dias de hoje.
Hoje a maioria dos anabatistas “clássicos” vivem na América do Norte: no Sul do Canadá e no Norte dos EUA.
Na Europa, principalmente na Holanda, ainda há os menonitas, que compõem um dos três ramos dos anabatistas, além dos huteritas e dos amish. Muitos menonitas, porém, não vivem mais tão fielmente aos princípios da fé herdada. Há algumas décadas, novamente surgiram dezenas de igrejas com orientação anabatista. São os chamados “alemães-russos”:
Em seu extenso histórico de perseguições, os menonitas e os huteritas praticantes do novo batismo se refugiaram também na Rússia, onde Catarina, a Grande, prometeu a eles liberdade religiosa durante cem anos. No século XIX, esse prazo venceu e o novo czar deu o prazo de dez anos para que se tornassem como os russos. Assim, praticamente todos os huteritas fugiram para a América do Norte. No entanto, grande parte dos menonitas e outros imigrantes de origem alemã permaneceram na Rússia.
As pessoas do idioma alemão sofreram duramente sob o regime comunista surgido posteriormente – e principalmente durante as duas guerras mundiais. Assim, após 1989, centenas de milhares se mudaram para a Alemanha e lá fundaram suas próprias igrejas, para que pudessem continuar vivendo de acordo com a sua fé.
Hoje observamos alguns efeitos do pensamento anabatista nas seguintes áreas:
  • A separação entre igreja e estado, já praticada há tempos, tem sua origem no acervo de ideias dos anabatistas. Eles praticaram essa separação desde o início.
  • A ideia de fundar “igrejas livres” igualmente provém deles. Há uma placa fixada no prédio da primeira igreja livre, fundada em Zumikon, no século XVI. Ela lembra que ali foi fundada a primeira igreja livre da Suíça, e com ela o próprio conceito de igreja livre.
  • O batismo de pessoas adultas. Muitas das atuais igrejas livres retornaram a essa maneira bíblica de batismo.
E nós? Sim, qual é a nossa opinião sobre o pensamento dos anabatistas? Estamos dispostos a reconsiderar as convicções da nossa fé? Muitas igrejas não achavam e ainda não acham necessário fazê-lo. No entanto, pode-se observar que, com o decorrer do tempo, acontecem mudanças em cada igreja. Na maioria delas, porém, são mudanças que afastam das doutrinas da fé bíblica.
Estamos dispostos a aceitar a exortação? Estamos dispostos a ser examinados diante de toda a Palavra de Deus e a sermos reorientados por ela?