sexta-feira, 31 de maio de 2019

Tempo de Graça, Tempo de Juízo


Tempo de Graça, Tempo de Juízo

Meno Kalisher
Durante a grande tribulação profetizada na Bíblia, acontecerão coisas terríveis e difíceis de imaginar. Como podemos enquadrar corretamente essa palavra profética?
O livro de Apocalipse se empenha principalmente com a descrição dos acontecimentos durante a grande tribulação.[1] Em um espaço de sete anos, dois terços da população mundial serão mortos. Com relação ao inferno envolvido no livro de Apocalipse e à morte dessa incontável e tão gigantesca multidão de pessoas em um período de tempo tão curto, muitos se perguntam: como podemos classificar essa tribulação?
É certo e adequado que se responda essa pergunta somente após um período de oração e da leitura e estudo de toda a Escritura Sagrada. Não basta apenas ler alguns trechos isolados quando se pretende chegar a um resultado maduro e responsável.
Quanto tempo durará a tribulação e como Deus a subdivide? Há vários profetas que anunciaram previamente os sete anos de tribulação que são descritos no livro de Apocalipse. Lemos sobre isso, por exemplo, em Daniel 9.24-27. Nessa profecia, o anjo Gabriel relata para Daniel os acontecimentos pelos quais a nação de Israel passará até a volta de Jesus. As 70 semanas ali mencionadas descrevem 490 anos, subdivididos em três fases. As duas primeiras se encerraram com a morte do Senhor Jesus. A terceira fase, de apenas sete anos, é o período da tribulação que também está descrita no livro de Apocalipse. Ela inicia com o Anticristo impondo uma aliança com muitos países e termina com a volta do Senhor Jesus para a terra. A verdadeira face do Anticristo será revelada e, ao final da tribulação, ele será destruído.
O profeta Jeremias afirma (cap. 30.7) que uma tribulação sobrevirá a Israel e que o povo fugirá dela. O motivo da tribulação é o pecado do povo e seu distanciamento de Deus. Jeremias menciona uma particularidade da tribulação: as faces das pessoas se tornarão da cor verde – um símbolo de extremo medo e miséria. O profeta prossegue inserindo um versículo, em 23.19 e 30.23, que esclarece o objetivo da ira de Deus: a ira de Deus alcançará os incrédulos.
Descrições semelhantes são encontradas nos livros dos profetas Joel, Sofonias, Isaías e outros. Ninguém precisa imaginar que apenas os profetas mais recentes mencionam esse evento. Moisés também o fez, em Deuteronômio 31–32. Lá ele descreve o que acontecerá ao povo de Israel devido à dureza de seus corações.
No evangelho de Mateus, quando se encontrava no monte das Oliveiras, o Senhor Jesus falou sobre os acontecimentos envolvendo a tribulação e respondeu às perguntas de seus discípulos sobre os sinais que antecederão a sua volta. Ele citou então do livro de Daniel e esclareceu que, na metade da tribulação, a verdadeira face do Anticristo seria revelada. Disse que o Anticristo perseguirá aqueles do povo de Israel que reconheceram a sua identidade e que, a seguir, voltaram-se em direção à verdade.[2]
O profeta Isaías relata (cap. 63.1-6) como o Messias destruirá todos os que se opuserem a ele e de como salvará o remanescente de Israel ao final da tribulação. O profeta Zacarias também menciona isso (caps. 12; 14.1-15).
O apóstolo Paulo incentivou e consolou os crentes de Tessalônica ao lhes dizer que a ira de Deus não será dirigida contra os seus filhos redimidos (1Ts 5.9; 2Ts 2.1-12). Deus reunirá seus fiéis antes de derramar sua ira sobre o mundo que o rejeitou.[3]
Assim, a tribulação é descrita em muitas páginas da Bíblia, juntamente com sua duração e objetivo. Se isso foi feito para prevenção, então muitas gerações já foram alertadas. A duração da tribulação será de sete anos para castigo daqueles que rejeitam a Deus – a ira de Deus sobre os incrédulos.
Antes de nos envolvermos novamente com a tribulação do livro de Apocalipse, deveríamos nos recordar de uma tribulação que há alguns anos atingiu todos os habitantes da terra. Nesse caso, a maioria dos filhos de Deus pode compreender e comprovar seu propósito. No tempo de Noé, as pessoas cometeram sérios pecados contra Deus; elas foram tão longe a ponto de Deus decidir que elas não deveriam continuar vivas.
Existem paralelos entre a condenação com o Dilúvio e os sete anos de tribulação.
Existem paralelos entre a condenação com o Dilúvio e os sete anos de tribulação. Em ambos os casos, Deus executa o castigo contra o mundo que o rejeitou. Para ambos existe um recomeço. Não devemos esquecer que a criação pertence a Deus e que ele é o Senhor soberano e justo.
O plano original de Deus era de governar sua criação em santidade, justiça, paz e veracidade. Antes que isso aconteça, Deus precisa afastar as pessoas da terra que se rebelam teimosamente contra o seu poder supremo. Isso é o que o profeta Daniel descreve em uma profecia (Dn 2): os pés da estátua, esta que representa o domínio das nações, foram esmigalhados pela pedra (o Messias), esta que estabelece o reino de Deus na terra. Todavia, observemos o momento maravilhoso em que o Senhor Jesus se revela ao apóstolo João, em Apocalipse 1.
No ano 95 d.C. o imperador romano Tito Flávio Domiciano iniciou uma perseguição homicida contra os cristãos. O imperador ordenou o exílio do apóstolo João na ilha de Patmos. João, o único apóstolo ainda sobrevivente dentre todos os apóstolos, foi removido para que não pudesse proporcionar auxílio, consolo ou encorajamento. Nessa época, João estava com 90 anos de idade. Podemos imaginar como ele se sentia, isolado na ilha, enquanto eram abatidas as igrejas do Messias nas cidades do império. Os cristãos sobreviventes perderam todas as suas posses e a maioria continuou vivendo em esconderijos.
O que o apóstolo João poderia fazer na ilha de Patmos, longe de seus irmãos na fé? Ele clamava a Deus: “Por favor, ajude-nos! O que restará aos teus filhos? Até quando o mal vencerá?”. Nesse período tão terrível para o “corpo de Cristo”, o Senhor Jesus se manifestou na ilha de Patmos com respostas claras para João:
Deus tem controle sobre tudo o que ocorre no mundo.
Deus é fiel e manterá os seus filhos em suas mãos; eles não sofrerão na tribulação, pois esta é destinada aos que rejeitaram a salvação de Deus. É uma mensagem de encorajamento.
O mal e os maus serão julgados. Deus removerá os maus da face da terra. A sentença justa de Deus ocorrerá exatamente do modo como ele alertou e profetizou.
O Senhor voltará e reinará sobre sua criação, como estava planejado desde o princípio.
Será que os detalhes descritos sobre os acontecimentos do período de tribulação são exagerados para provocar medo? De modo algum!
Será que os detalhes descritos sobre os acontecimentos do período de tribulação são exagerados para provocar medo? De modo algum! O exagero também é pecado e Deus opera como o Soberano, o Santo e o Puro, e não alguém que utiliza instrumentos que não correspondam ao seu caráter. Um exemplo em nossa própria vida familiar esclarece o objetivo de Deus e ajuda a entendê-lo.
Por que existe um programa nas escolas no qual os alunos são levados a visitar clínicas de reabilitação, onde elas são apresentadas a pessoas que se tornaram vítimas de acidentes causados por negligência ao dirigir? Será porque os pais e os professores são desumanos e querem causar pânico? Será porque queremos assustar e amedrontar os filhos de tal modo que nunca venham a requerer sua habilitação de motorista? Não! Fazemos isso, sim, porque amamos nossos filhos e queremos preservá-los de sofrimentos. Nós lhes mostramos a dolorosa realidade que atinge aqueles que não observam as recomendações para a preservação da vida.
Como, então, podemos enquadrar corretamente a tribulação? Para os maus, que não querem aceitar a graça de Deus em Jesus, a palavra profética é uma mensagem de alerta e do juízo: “Este será o seu futuro se você continuar a desprezar e rejeitar a amorosa salvação de Deus, que ele oferece a todos aqueles que creem no sangue do seu único Filho, Jesus Cristo. Arrependa-se agora mesmo, antes que seja tarde!”.
Para os salvos ela é uma mensagem de ânimo e de justiça: “O mal não prevalecerá para sempre. Chegará o dia de seu castigo”. Deus prometeu remover da terra toda a impiedade e todos os ímpios antes que ele volte novamente para governar esse mundo juntamente conosco. O período de tribulação profetizado na Bíblia é uma expressão da justiça de Deus. É o cumprimento da condenação dos pecadores que rejeitaram a sua redenção. Simultaneamente, ele é um período de graça para seus filhos fiéis.

Notas

  1. Apocalipse 6–19
  2. Ver também Apocalipse 12.13-18
  3. Apocalipse 3.10; 15.1 – A comprovação de que a ira de Deus se originou no primeiro selo.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Tipologia Bíblica


Tipologia Bíblica

Thomas Ice
O apóstolo Paulo escreve em 1 Coríntios 10.6: “...e estas foram-nos feitas em figura...”. A palavra grega tupos, aqui traduzida por “figura”, tem o sentido de “padrão”, “ilustração”, “exemplo” ou “tipo”. Em 1 Coríntios 10.11, Paulo observa: “Ora, tudo isto lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso nosso...”. O quê? Neste caso, Paulo se refere a eventos relacionados ao êxodo no Antigo Testamento. Assim, um tipo é um padrão bíblico, ou uma ilustração bíblica, normalmente extraído do Antigo Testamento, que assume a forma de padrões relacionados a pessoas, acontecimentos ou coisas.
Hebreus 8.5 nos diz que o Tabernáculo foi construído a partir de um padrão celestial que fora mostrado a Moisés no monte Sinai: “Atenta, pois, que o faças conforme o Seu modelo, que te foi mostrado no monte” (Êx 25.40). Estêvão observou em seu sermão: “Estava entre nossos pais no deserto o tabernáculo do testemunho, como ordenara aquele que disse a Moisés que o fizesse segundo o modelo que tinha visto” (At 7.44). O Tabernáculo e, mais tarde, o Templo são tipos que se tornam padrões que revelam elementos-chave do plano divino de salvação.
Muitos exemplos de como padrões em vidas de indivíduos fornecem um tipo podem ser vistos nas experiências de personagens da história antiga do Antigo Testamento, como Abraão, Isaque e José. Em Gênesis 22, o padrão do sacrifício de Isaque por Abraão prefigura muitos eventos que espelham a morte e a ressurreição de Jesus. O Senhor disse a Abraão: “...Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá (...) sobre uma das montanhas...” (Gn 22.2). Este versículo oferece um paralelo à entrega que Deus, o Pai, fez de Jesus, Seu Filho unigênito. Acredita-se que o monte na terra de Moriá seja a mesma colina em Jerusalém em que o Templo veio a ser construído e onde Israel ofereceu seus sacrifícios. O ministério de Jesus esteve bastante ligado àquela área. Isaque foi um sacrifício voluntário (Gn 22.5-9), tal como Jesus. A disposição de Abraão em sacrificar Isaque e a eventual provisão de um cordeiro (Gn 22.9-14) retratam o sacrifício e a provisão que Cristo fez definitivamente por nosso pecado.
Certos acontecimentos na vida de José são um tipo e uma prefiguração do relacionamento entre Israel e seu Messias. José revela a seus irmãos um sonho que o apresenta como autoridade sobre eles (Gn 37.5-9). José é rejeitado por seus irmãos (Gn 37.10,11), que planejam matá-lo (Gn 37.18-20), mas acabam vendendo-o como escravo (Gn 37.25-27). Isso retrata a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus Cristo. Enquanto isso, sem que Jacó, seu pai, nada soubesse, José subira a uma posição de grande poder e influência sobre as nações pagãs por causa dos acontecimentos ligados a uma grande fome (Gn 41). Seus irmãos descem ao Egito em busca de alimento fornecido pelos gentios, e nessa ocasião José misericordiosamente se dá a conhecer a seus irmãos e restaura o relacionamento rompido (Gn 42-45). Esses eventos retratam a conversão escatológica de Israel a Jesus como seu Messias durante a Tribulação, a qual resultará nas bênçãos milenares para Israel (Gn 46).
Há muitos tipos possíveis na Bíblia. No entanto, um evento ou conceito bíblico só pode ser estabelecido como um tipo depois que o texto foi interpretado historicamente e o padrão dos eventos determinado. Conotações tipológicas não podem ser usadas como a primeira abordagem interpretativa de qualquer passagem. A tipologia adequada só pode ser estabelecida após o fato, numa visão retrospectiva, comparando-se os padrões dos acontecimentos históricos ao plano divino para a história, passada e futura. (Thomas ice).

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Vivendo nos Tempos Finais

Vivendo nos Tempos Finais com um Olhar em Daniel

Dr. Rolf Sons
Como a fé cristã pode ser identificada em um mundo que não se entende como cristão? Como pode permanecer reconhecível e vigorosa numa época que cada vez mais se desvincula de conteúdos e valores cristãos? De que modo a nossa fé manterá um perfil que não permita que seja dissolvida ou submerja no mainstream social geral?
Essas perguntas não são novas. Na verdade, são tão antigas quanto a própria fé no Deus da Bíblia. A fé no Deus único da Bíblia sempre esteve em conflito com outras influências, posturas e comportamentos estranhos à fé bíblica.
Se examinarmos a Escritura Sagrada, veremos que o conflito entre adaptação e resistência constitui um tema constante para a fé bíblica. Encontramos Arão, o irmão de Moisés, cedendo à pressão do povo por adaptação e substituindo o Deus do Sinai por uma imagem dourada de um touro. Por outro lado, vemos também como Daniel e seus amigos se mantêm firmes diante da pressão por adaptação na corte babilônica e não abrem mão da sua identidade judia. No profeta Jeremias podemos observar como sua pregação contraria as palavras dos profetas daquele tempo e como ele precisa pagar sua atitude com desprezo à sua pessoa e com sofrimento. Um olhar para os evangelhos mostra-nos a incorruptibilidade e a resistência do Senhor Jesus. Paulo, finalmente, desafia abertamente a igreja em Roma a não se conformar a este mundo (Rm 12.2).
A seguir daremos uma atenção mais detida a Daniel e a seus três amigos. Segundo Gerhard Meier, podemos aprender do livro de Daniel o que significa confiança em Deus, obediência aos mandamentos de Deus e fidelidade até o martírio. Esse livro, um tanto misterioso em muitas passagens, revela hoje em dois sentidos uma atualidade particular. Por um lado, ele nos mostra como podemos viver como cristãos na diáspora. Crentes em situação social minoritária e expostos à pressão de um público ou uma sociedade não-cristã ou anticristã podem aprender com o livro de Daniel. Muitos cristãos em países muçulmanos vivem em situação de minoria, mas mesmo entre nós aqui no Ocidente sentimos crescentemente a pressão por adaptação à tendência social predominante.
Outra coisa que observamos em Daniel é a perspectiva escatológica. O livro de Daniel testifica de uma forte esperança pelo reino vindouro de Deus. Essa esperança vem acompanhada de grandes abalos. Como cristãos, vivemos hoje numa situação comparável. Impérios vêm e vão, e a nossa terra sofre múltiplos abalos. No meio de tudo isso, porém, esperamos o novo mundo de Deus.
Quero agora tentar descrever em cinco tópicos um estilo de vida escatológico que se opõe à pressão por adaptação:
1. Manter firmeza de coração. O livro de Daniel nos introduz nas violentas convulsões ocorridas no Oriente Médio no sexto século antes de Cristo. No ano de 605, o rei babilônico Nabucodonosor vence a grande potência egípcia na batalha de Carquemis, conquistando com isso um domínio irrestrito naquela região. Em seu retorno à Babilônia, ele avança pela primeira vez contra Jerusalém, saqueia o templo e providencia deportações. Daniel e seus três amigos são levados à Babilônia e submetidos a um grande programa de reeducação na corte daquele despótico rei. Nabucodonosor equipara-se nisso aos tiranos de todos os tempos. Ele procura jovens isentos de debilidades, belos, bem-dotados e inteligentes, os quais pretende “enquadrar”. Para isso, deverão não apenas aprender a língua e a escrita dos babilônios; eles devem também acostumar-se à culinária babilônica. Nesse contexto eles são renomeados. Daniel (Deus é meu Juiz) logo se tornará Beltessazar (Bel, o deus pagão, proteja sua vida). – A transição para o cardápio pagão torna-se uma séria prova de fé para Daniel. Os babilônios comem animais considerados impuros segundo a lei judaica. Além disso, tomam vinho dedicado e em parte oferecido aos deuses. A questão da comida não é nenhum adiáforo, ou seja, algo de importância secundária. Antes, trata-se aqui da obediência ao mandamento de Deus.
Em sua família de origem judaica, Daniel aprendeu os regulamentos alimentares dos judeus e também os praticou. Agora ele é pressionado a abandoná-los ou a admiti-los como suas próprias convicções. Ainda como jovem, Daniel enfrenta uma situação decisiva de amplo alcance. Permanecerá ele fiel às suas convicções ou adaptará estas às circunstâncias externas, cedendo à pressão? Podemos também formular essa pergunta assim: como cristãos, onde somos induzidos a nos adaptar ao contexto cultural? Onde precisamos distinguir-nos e obedecer a Deus mais que aos homens?
Daniel se adaptou em vários aspectos. Ele precisou ocupar-se com a língua, a escrita e a ciência pagãs. Ele se movimenta diariamente na corte do rei e interage com pessoas a quem sua fé nada significa. Ele está presente às festas pagãs e até recebe um novo nome. Daniel vive totalmente imerso em um mundo pagão. Ao mesmo tempo, porém, ele toma uma decisão fundamental. Ele não quer tornar-se impuro. Com toda a solidariedade externa com aquele império pagão, em seu coração ele permanece fiel a Deus. Assim, lemos: “Daniel, contudo, decidiu não se tornar impuro com a comida e com o vinho do rei”.
Em seu coração, Daniel toma a firme decisão de permanecer fiel às tradições que sua educação judaica lhe incutiu. Ninguém o força exteriormente a tomar essa decisão. Antes, neste ponto ele assume responsabilidade por si mesmo. Quer permanecer fiel ao seu Deus, à sua fé e à sua educação religiosa.
Podemos extrair três lições desse evento. Por um lado, necessitamos proporcionar às crianças uma formação decididamente cristã. Elas necessitam de tradições, hábitos e rituais que mais tarde lhes possam fornecer apoio na vida. Nesta chamada era pós-moderna, cuja característica inclui a total ruptura com as tradições, enfrentamos grandes desafios. Como poderemos cultivar para nós mesmos tradições úteis e repassá-las à geração seguinte?
Nossas crianças necessitam de tradições, hábitos e rituais que mais tarde lhes possam fornecer apoio na vida.
Outro ponto que se destaca neste contexto é o fato de que Daniel elabora sua própria decisão. Uma tradição precisa ser assumida. É preciso assumir responsabilidade pessoal pelas tradições. Não basta assumir a fé exteriormente. Há necessidade de uma “motivação intrínseca”.
Finalmente, em um mundo secular ou também multirreligioso, a fé impõe decisões. Tomar decisões, porém, significa que um cristão não cederá simplesmente e se deixará arrastar com a grande corrente, mas confessa sua posição e com isso assume responsabilidade.
Tal confissão requer coragem. O Novo Testamento informa-nos que Jesus Cristo reconhece e abençoa decisões como esta (Mt 10.32). Daniel também experimenta a confirmação de Deus. Não só ele experimenta a boa vontade do copeiro real, como também é premiado com saúde, bem-estar e sabedoria divina.
2. Obedecer mais a Deus que aos homens. No segundo ano do seu reinado (aprox. no ano 602), Nabucodonosor é profundamente angustiado por um sonho noturno, mas ele não lembra mais o conteúdo do sonho. Por isso ele ordena aos videntes e sábios do seu reino que lhe comuniquem tanto o conteúdo como a interpretação do sonho. Estes, porém, se veem sobrecarregados e precisam reconhecer: “O que o rei está pedindo é difícil demais; ninguém pode revelar isso ao rei, senão os deuses, e eles não vivem entre os mortais” (2.11). Os representantes do esoterismo pagão chegaram ao fim da sua arte e precisam confessar a necessidade da ajuda de outros deuses, desconhecidos na Babilônia. Finalmente, Daniel toma a iniciativa. Como ele vê a si mesmo e também os magos pagãos em perigo de vida, ele se dirige ao rei e pede um prazo para interpretar o sonho. Daniel procura seus amigos. Juntos eles oram ao Deus que “revela coisas profundas e ocultas; conhece o que jaz nas trevas” (2.22) a fim de que ele lhes revele o sonho. Finalmente, Daniel recebe em uma visão noturna uma tremenda revelação dos reinos deste mundo e de sua desintegração.
A interpretação do sonho por Daniel assustou profundamente Nabucodonosor. Por isso é compreensível que ele trate de fazer tudo que está ao seu alcance para firmar e unir o seu reino – e o que poderia ser melhor para isso do que um grande ato de Estado que obrigasse todos os súditos à adoração do Deus único? Nabucodonosor manda fazer uma estátua revestida de ouro, com cerca de 30 metros de altura e aproximadamente 3 metros de largura. Considerando seu perfil delgado, pode ter sido um obelisco. Para inaugurar esse símbolo da unidade de Estado e religião, ele convida todos os governadores provinciais e representantes da justiça e da administração pública. A unidade do império é questão prioritária. Por isso, os representantes das diversas regiões do império estariam comprometidos com a adoração da estátua.
Assim, também os três amigos de Daniel foram convocados a essa cerimônia oficial em suas funções de governadores distritais. Como judeus, consideram-se comprometidos com o primeiro mandamento. Por isso recusam-se a adorar o ídolo. A informação é levada a Nabucodonosor: “Mas há alguns judeus... que não te dão ouvidos, ó rei. Não prestam culto aos teus deuses nem adoram a imagem de ouro que mandaste erguer” (3.12).
No fundo, o que se passa aqui é ridículo. O que representam três homens entre milhares, talvez até milhões de pessoas que adoram o deus oficial? O império de Nabucodonosor representa o estado anticristão totalitário. Ele exige submissão total. Quem não se submeter é afastado, excluído, difamado, perseguido ou até morto. Temos aqui as características de uma ditadura. A história está cheia delas.
Nós hoje vivemos numa democracia. Há liberdade de opinião, tolerância e liberdade – e liberdade significa sempre a liberdade do divergente. Ainda assim, também em nossa sociedade libertária esbarramos em limites. Existe algo como uma corrente da opinião pública, da qual é difícil escapar. Quem se opõe ao mainstream e não aprova tudo o que a massa ou os formadores de opinião social defendem, é rapidamente excluído e difamado. Infelizmente isso também se manifesta em muitas igrejas. Existe algo como uma correção política daquilo que se pode dizer, escrever ou pensar e o que não pode. Há exemplos de sobra disso no mundo eclesiástico e acadêmico. É injusto quando, por exemplo, um congresso de igrejas exclui o “Serviço de Evangelização de Israel” de sua área de atuação. Da mesma forma é injusto quando grupos como o Wuestenstrom [Corrente no Deserto], que pleiteiam um tratamento alternativo de pessoas com tendências homossexuais, não encontram espaço no maior encontro protestante europeu.
Quem se opõe ao mainstream e não aprova tudo o que a massa ou os formadores de opinião social defendem, é rapidamente excluído e difamado.
Passamos hoje por uma situação agitada no relacionamento com os muçulmanos. Quem arriscará dizer que as diferenças entre o islã e o cristianismo são intransponíveis? Quem arriscará dizer que o cristianismo e o islã jamais poderão se irmanar? Quem arriscará contestar a tendência de equalização?
Como resistir à adaptação? Os três amigos de Daniel obedecem em sua situação mais a Deus que aos homens. Onde a liberdade do evangelho e da fé está em jogo e é ameaçada, aplica-se esta máxima. Os cristãos são leais ao seu Estado enquanto puderem expressar livremente sua fé. Onde se procura inibir isso, eles respondem e obedecem a uma lealdade superior.
3. Suportar sofrimentoA Babilônia criou fama como a terra das fornalhas. Queimavam-se tijolos e fundiam-se minérios em fornos-túnel. Com aquecimento a carvão vegetal, essas fornalhas atingiam temperaturas de até 1.000 graus. Foi numa fornalha desse tipo que os três amigos de Daniel seriam lançados. Eles se recusaram a adorar o ídolo. Agora precisam contar com as consequências e são atirados na fornalha ardente.
A igreja dos tempos finais que resistir à pressão por adaptação não poderá escapar do sofrimento. Jesus mesmo alertou seus discípulos de que seriam lançados nas prisões, conduzidos à presença de reis e governadores e que seriam odiados por todos (Lc 21.12ss). Paulo escreve à igreja de Filipos: “Pois a vocês foi dado o privilégio de não apenas crer em Cristo, mas também de sofrer por ele” (Fp 1.29). A carta aos Hebreus dirige o olhar da igreja sofredora para Cristo, que já sofreu na cruz por ela e suportou a oposição dos homens (Hb 12.1ss).
Há uma afinidade íntima entre seguir a Cristo e sofrer. Os discípulos de Jesus são enviados “como ovelhas no meio de lobos”. Manfred Seitz lembra que a igreja é abençoada no martírio. Para que ela é abençoada? Para que a igreja de Jesus permaneça de fato autêntica e sua vida espiritual não se torne rasteira, ela precisa de uma certa medida de sofrimento. Caso contrário, ela se desprenderá de Cristo e passará a vagar ao sabor de muitas correntezas. Apenas o sofrimento ancora ela firmemente na Palavra de Deus.
Outra bênção do sofrimento consiste em que as denominações separadas se aproximem nessa situação. Seitz lembra aqui as experiências de cristãos luteranos e ortodoxos na Rússia durante a revolução bolchevique e os encontros entre católicos e protestantes nos campos de concentração da Alemanha nazista. No confronto com o império anticristão, que reivindica submissão total, resta à Igreja somente o sofrimento. Karl Hartenstein diz: “Para a igreja não existe revolução, apenas o sofrimento”.
No entanto, em todo sofrimento existe também uma experiência espiritual fundamental. Os sofredores são sustentados e guardados por Cristo de modo especial. Exatamente essa experiência é concedida também aos três amigos de Daniel. Ao entrarem na fornalha, uma quarta pessoa se associa a eles, de modo que Nabucodonosor esfrega os olhos espantado: “Não foram três os homens amarrados que nós atiramos no fogo?... Olhem! Estou vendo quatro homens, desamarrados e ilesos, andando pelo fogo, e o quarto se parece com um filho dos deuses” (3.24b-25).
A carta aos Hebreus oferece uma interpretação desse milagre. Ela diz: “[Pela fé] apagaram o poder do fogo” (Hb 11.34). Com efeito, os três amigos confiaram na supremacia do seu Deus. “... o Deus a quem prestamos culto pode livrar-nos, e ele nos livrará das tuas mãos, ó rei” (3.17).
A história do seu povo ensinou aos três que o seu Deus pode salvar. Se ele salvou Israel do mar Vermelho, ele também poderia salvar naquela situação. Por outro lado, a história dos mártires cristãos mostra que nem sempre o desfecho é tão feliz como no caso dos amigos de Daniel. Ainda assim permanece a certeza de que também aqueles que sofrem por amor a Cristo são sustentados pela sua mão. Em 1917, na região do Báltico, o professor de teologia Traugott Hahn foi primeiro preso pelos bolcheviques e depois morto. Sua esposa escreve em retrospectiva:
“Naquela escuridão quase anestesiante da primeira dor, brilhou da cruz de Cristo o ‘apesar’ da fé. Acaso o mal não havia aparentemente vencido no dia da crucificação? E, no entanto, foi a maior vitória jamais conquistada, o maior ato de amor de Deus em favor dos homens. Assim, também nós pudemos crer nas intenções amorosas de Deus, embora evidentemente ainda estivessem encobertas para nós. Não havia Deus também fortalecido intimamente o meu marido para que pudesse trilhar em obediência a ele o amargo caminho para a morte, e não foi essa vitória íntima maior do que teria sido uma salvação física?”
4. Cultivar a piedade persistentemente. Agora aparece uma nova figura no palco da política mundial: Dario, o rei dos medos. Uma das suas primeiras providências como novo rei foi uma reforma administrativa. Ele subdivide seu gigantesco império: Mesopotâmia, Síria, Fenícia, Israel. Além dos 120 sátrapas, ele ainda institui três supervisores como espécie de instância intermediária entre ele e os sátrapas. Um desses foi Daniel. Assim, Daniel assume um alto posto no governo. Ele é bem-sucedido e faz carreira. Fé em Deus, bem como progresso e sucesso não se opõem, mas são perfeitamente compatíveis.
No entanto, Daniel encara a intriga da oposição. Seu sucesso desperta os invejosos que sabem exatamente por onde pegá-lo. Como seu procedimento é ilibado, resta só a sua fé como aspecto vulnerável. Eles intervêm junto ao rei. Pedem que este outorgue uma lei que proíba orações a um deus estranho. O fato de essa lei ser lavrada por escrito confere-lhe um peso particular.
A reação de Daniel a esse decreto é impressionante: “Quando Daniel soube que o decreto tinha sido publicado, foi para casa, para o seu quarto, no andar de cima, cujas janelas davam para Jerusalém e ali fez o que costumava fazer: três vezes por dia ele se ajoelhava e orava, agradecendo ao seu Deus” (6.10).
Daniel não se perde em agitação ou pânico, nem se torna agressivo. Ao contrário, ele mantém com toda a calma seu hábito de orar três vezes ao dia. Daniel também não contemporiza. Teria sido compreensível interromper as orações por apenas trinta dias! Ou então orar com as janelas fechadas. Nada disso é relatado. Daniel resiste à pressão por adaptação. Cultiva seus hábitos persistentemente e assim permanece fiel ao seu Senhor. A oração de Daniel torna-se uma confissão de fé.
Passamos hoje por uma situação agitada no relacionamento com os muçulmanos. Quem arriscará dizer que as diferenças entre o islã e o cristianismo são intransponíveis? Quem arriscará dizer que o cristianismo e o islã jamais poderão se irmanar?
Em nossos dias, a oração corre perigo. Ou não encontramos tempo para ela ou achamos que se pode perfeitamente renunciá-la. Perguntaram ao velejador Gebhard Rollo, que deu a volta ao mundo, se também havia orado no percurso. Sua resposta: “Não! Isso é para os fracos”. Este é o espírito que nos cerca. Como, porém, pode sobreviver espiritualmente uma cristandade que deixou de orar ou que não encontra mais tempo para a oração? Sem a oração, a fé não tem como encarar a diáspora. Daniel conhecia esse segredo, e por isso ele mantém seus horários de oração.
Por meio da oração, Daniel imprime um foco à sua vida. Simbolicamente, isso se expressa pela orientação a Jerusalém que ele dá à oração. Sem tal orientação diária, nossa fé será frágil e nosso relacionamento com Deus, superficial. Hábitos espirituais como um horário certo de oração por dia são uma ajuda para conferir um perfil à nossa fé. Eles ajudam a nos orientar, purificar e clarificar. Particularmente em nossos tempos tão inundados pela mídia, tais hábitos representam um auxílio genuíno.
5. Manter viva a esperança pela volta do Senhor. O sétimo capítulo do livro de Daniel abre um novo horizonte. Em primeiro plano estão as visões de Daniel sobre o futuro do mundo e do reino de Deus.
Antes de tudo, Daniel vislumbra os quatro ventos (mensageiros de Deus) que movem o mar (dos povos). Toda a humanidade está em rebelião contra Deus. Essa rebelião encontra sua expressão concreta na forma dos quatro animais que se elevam do mar dos povos. Trata-se de potências humanas que, desvinculadas de Deus, trazem em si um caráter animalesco. A sequência dos animais é leão com asas de águia, urso, leopardo e um aterrorizante animal desconhecido.
Na Bíblia, o leão e a águia são figuras dos grandes impérios (cf. Jr 2.15; Ez 17.3). No entanto, o reino sobre-humano do leão é debilitado. Arrancam-se as asas dele e ele recebe um coração humano. O reino poderoso torna-se fraco, humano e temeroso. Muitos aspectos sugerem tratar-se do império persa, diante de cujo poder todo o mundo estremecia. Ao final, porém, ele é atropelado por Alexandre, o Grande (cf. Dn 8.4,7). A característica do urso é, além da sua força, seu apetite insaciável. O urso se levanta. Assume posição de ataque. Na boca ele ainda carrega três costelas, restos da presa que acabou de devorar. Mal abateu uma vítima, ele já busca a próxima. A interpretação encaixa-se bem em Alexandre, o Grande e o seu império. Já no leopardo destacam-se as quatro asas e cabeças. Elas representam o poder de abrangência mundial desse animal. Sua interpretação se encaixa melhor no mais universal dos antigos impérios – o Império Romano. Este torna-se precursor do império mundial anticristão. O quarto animal tem caráter próprio – ele é terrível e destruidor. Os dez chifres são expressão do seu imenso poder. O chifre pequeno (o décimo-primeiro) que brota dele pode ser atribuído à pessoa do Anticristo.
Vemos aí na Escritura Sagrada pela primeira vez a figura do Anticristo. Ele emerge do mar dos povos e alcançará um poder inacreditável. Seu objetivo é destruir a igreja de Deus e abolir os tempos, as ordenanças e as leis que Deus deu a este mundo. Ele possui algo de totalitário e assumirá o lugar do próprio Deus. Como “homem do pecado” (2Ts 2.3-4,8; cf. Mt 24.12), ele abolirá a ligação entre a consciência e os mandamentos de Deus. Ele anuncia o amor, a guarda contra o sofrimento, o alívio na luta pela vida e tudo aquilo que finalmente libertará a sexualidade daquilo que a restringe. Ele elimina a vida nascitura. “O Anticristo incorpora, representa e proclama aquilo que no presente momento mundial é o humano, o evidente, o que merece aprovação e o absolutamente indispensável” (Manfred Seitz). Finalmente, a carta de João diz que ele nega a divindade de Jesus Cristo. Ele representa uma forma de fé. Ele talvez ainda saiba dizer “Jesus”, mas não mais que este é o Cristo. Neste ponto há controvérsias. Na linguagem moderna, o seu espírito se manifesta onde Jesus é considerado apenas um mestre ético, mas não mais Senhor e Salvador do mundo.
A atual igreja evangélica se cala sobre essa misteriosa figura do Anticristo. Existe aí uma espécie de “correção clerical”, um acordo tácito sobre o que se pode dizer publicamente na igreja para não ser condenado como conservador, fundamentalista, anticientífico, biblicista ou excessivamente piedoso. É preciso discernir os espíritos. A Bíblia adverte contra a sedução anticristã.
Agora, porém, abre-se neste sétimo capítulo mais uma outra porta. Além da figura do Anticristo, Daniel vê ainda uma outra. É o Filho do Homem que vem do céu e a quem Deus concede todo o poder e toda honra. O Filho do Homem é considerado o soberano escatológico investido por Deus. Este não é outro senão Jesus Cristo. Deus envia o Filho do Homem ao nosso mundo dominado pelo reino animal para redimi-lo e vencer o animal. É em direção a este último confronto que caminhamos como igreja de Jesus Cristo. Cristo terá a última palavra. Ele vencerá o poder do Maligno. Cabe sustentar a esperança pelo retorno do Senhor que predomina sobre todos os poderes e autoridades deste mundo.
Daniel nos mostra como podemos, na condição de cristãos, resistir à pressão por adaptação. O capítulo 12 diz: “Mas você, Daniel, feche com um selo as palavras do livro até o tempo do fim. Muitos irão por todo lado em busca de maior conhecimento”. – A Palavra de Deus é o que nos sustenta, que nos abre os olhos e dá forças para resistir. Nossa missão como igreja é guardar a Palavra de Deus de forma autêntica, como um diamante em sua pureza e transparência.

domingo, 5 de maio de 2019

Cuidado com os cães!


Cuidado com os cães!

Nathanael Winkler
Em Filipenses 3.2 lemos: “Cuidado com os ‘cães’, cuidado com esses que praticam o mal, cuidado com a falsa circuncisão!”. Paulo passa esse tipo de advertência em quase todas as suas cartas. Ele adverte contra falsos mestres que penetram na igreja e ensinam algo diferente do que Paulo e os apóstolos. Ele descreve os falsos mestres como cães, como quem pratica o mal e como aqueles que introduzem uma falsa circuncisão. Quando se trata do evangelho, Paulo não contemporiza. Do ponto de vista atual, isso não é “politicamente correto”. Em nossos dias, muitos – especialmente políticos – procuram enfeitar o que dizem para de modo nenhum ferir alguém. Paulo, no entanto, não pode tolerar nada que afaste da doutrina da graça.
Quem são os cães a que Paulo se refere? Naqueles tempos, os cães eram diferentes daqueles que conhecemos hoje. Para nós, o cão é um animal doméstico e é tido como agradável, gentil e o melhor amigo. Naqueles tempos, porém, os cães eram selvagens, circulavam em bandos e só viviam em busca de vítimas. O mesmo comportamento é o dos falsos mestres que penetram na igreja. Eles procuram a quem possam devorar e onde estão os pontos fracos.
No Salmo 59.4-5 diz: “Mesmo eu não tendo culpa de nada, eles se preparam às pressas para atacar-me. Levanta-te para ajudar-me; olha para a situação em que me encontro! Ó Senhor, Deus dos Exércitos, ó Deus de Israel! Desperta para castigar todas as nações; não tenhas misericórdia dos traidores perversos”. Davi descreve aqui os descrentes, os pagãos. Mas em quem Paulo pensa? De certo modo, Paulo também se refere aos descrentes. Em Filipenses 3.3 ele enfatiza: “Pois nós é que somos a circuncisão”. Os falsos mestres eram judaístas e pregavam a circuncisão. Afirmavam que os crentes deveriam circuncidar-se para serem membros efetivos da igreja.
Paulo era judeu e em geral enfrentava oposição dos judeus. Aonde quer que ele fosse, seu primeiro destino era sempre a sinagoga. De fato, esse era o melhor ponto de partida para evangelizar numa cidade. Em geral, os judeus causavam então algum tumulto por não concordarem com Paulo. Onde há tumulto, costuma juntar gente para ver o que há. Uma oportunidade como essa pode ser aproveitada para pregar a todos. Assim, naquele tempo viviam no Império Romano muitos judeus espalhados por toda parte, e Deus usou essa situação para divulgar o evangelho. Paulo enfrentava oposição por perseguição. Os judaístas ensinavam “Jesus e a circuncisão” ou “Jesus e o sábado” ou “Jesus e uma outra lei”. Não era mais a graça somente.
Se alguém pregar um evangelho diferente daquele anunciado pelos apóstolos, ele será um falso mestre e amaldiçoado.
Paulo identifica esses “cães” também com “esses que praticam o mal”. O termo “praticam” designa pessoas ativas e que, nesse caso, vêm trazer um outro evangelho. Esse também era o problema das igrejas na Galácia: “Admiro-me de que vocês estejam abandonando tão rapidamente aquele que os chamou pela graça de Cristo, para seguirem outro evangelho que, na realidade, não é o evangelho. O que ocorre é que algumas pessoas os estão perturbando, querendo perverter o evangelho de Cristo. Mas, ainda que nós ou um anjo dos céus pregue um evangelho diferente daquele que pregamos a vocês, que seja amaldiçoado!” (Gl 1.6-8). Também aqui Paulo não deixa dúvidas. Ele diz que, se alguém pregar um evangelho diferente daquele anunciado pelos apóstolos, ele será um falso mestre e amaldiçoado.
Esses “que praticam o mal” talvez fossem externamente perfeitos, talvez seu estilo de vida parecesse impecável. Talvez tais pessoas tenham sido observadas e tenham impressionado com sua aparência exemplar e decente. No entanto, não devemos deixar-nos enganar: Satanás não é tolo, ele sabe como pode seduzir os crentes. Em Filipenses 3.18 Paulo escreve em prantos: “Pois, como já disse repetidas vezes, e agora repito com lágrimas, há muitos que vivem como inimigos da cruz de Cristo”. O apóstolo conhece o mal que esses inimigos poderão provocar. Ele adverte os filipenses a ficarem atentos e, com respeito aos judaístas, que deverão guardar-se do legalismo.
Tendemos facilmente a pensar que devemos oferecer algo a Deus para receber algo dele. É a natureza humana: se eu trabalhar, serei remunerado. Em parte, também pensamos assim em relação à obra da redenção: preciso fazer algo a fim de merecê-la.
Não, nós nada podemos oferecer a Deus. Jesus Cristo realizou tudo por nós. É graça e apenas graça. Será que isso significaria então que podemos fazer o que bem entendemos? Não, um cristão que pensa assim precisaria se questionar se ele realmente experimentou um novo nascimento. Um cristão em quem realmente habita o Espírito de Deus desejará viver segundo o padrão de Deus. Ele será transformado pelo Espírito de Deus. Mas se começarmos a pregar a necessidade de praticar isso e mais aquilo para conquistar a salvação, como por exemplo guardar sábados e determinadas festas, observar leis de pureza, jejuar, confessar-nos, isto será um outro evangelho, que não encontramos na Bíblia.
Naquele tempo, o que penetrava na igreja eram os judaístas e adicionalmente as marcas das religiões pagãs. E como é a situação nas nossas igrejas? Em Mateus 7.21-23 lemos: “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor!’, entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?’ Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês que praticam o mal!”.
Trata-se aqui de pessoas ativas na igreja, mas cuja motivação não é bíblica. Nem são renascidas e penetram na igreja por ganância. Essa gente, que Paulo chama de “cães” e praticantes do mal, introduzirá uma falsa circuncisão.
Teria Paulo algo contra a circuncisão? Em Filipenses 3.5 ele diz de si mesmo: “Circuncidado no oitavo dia”. Mas ali ele fala da sua vida quando ainda não era crente. Contudo, o que foi que ele fez depois com Timóteo? Atos 16.1-3 relata: “[Paulo] Chegou a Derbe e depois a Listra, onde vivia um discípulo chamado Timóteo. Sua mãe era uma judia convertida e seu pai era grego. Os irmãos de Listra e Icônio davam bom testemunho dele. Paulo, querendo levá-lo na viagem, circuncidou-o por causa dos judeus que viviam naquela região, pois todos sabiam que seu pai era grego”.
Paulo circuncidou Timóteo. A mãe de Timóteo era judia e sua circuncisão era uma expressão do seu pertencimento ao povo de Israel. Ele era judeu, e por isso não havia nenhum problema em que ele se circuncidasse. A circuncisão foi feita para que ele não escandalizasse os judeus. Paulo mesmo escreveu que ele se tornou judeu para os judeus e grego para os gregos (1Co 9.20-21). Esse foi um passo muito sábio de Paulo a fim de não se expor desnecessariamente a ataques. No entanto, isso de modo nenhum significa que ele pregasse a circuncisão. Ele enfatizava que aqueles que introduziam a falsa circuncisão exigiam a circuncisão de todos.
Também nós precisamos ficar atentos em relação ao judaísmo para não nos ocuparmos com coisas que nos conduzam de volta à lei da antiga aliança ou de introduzi-las em nossa vida, afastando-nos assim da graça de Cristo. Pergunto-me por que um cristão deveria de repente colocar um quipá na cabeça se o Senhor e os apóstolos não mandaram fazer isso. Talvez alguém goste disso, mas o faz para quem? E se alguém quiser guardar o sábado, que o faça, mas então essa pessoa deveria guardar ainda muito mais da lei da antiga aliança. Temos alguém que cumpriu toda a lei: Jesus Cristo. Ele nos salvou. O objetivo de Paulo era anunciar que não precisamos mais retornar à lei.
Deus não quer que vivamos a nossa fé em função da nossa própria força, porque assim fracassaremos.
Ele explica: “Porque nós é que somos a circuncisão, nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne” (Fp 3.3, RA). Nós que pertencemos a Jesus Cristo é que somos a circuncisão, tanto gentios como judeus. Deus não quer que vivamos a nossa fé em função da nossa própria força, porque assim fracassaremos. A nossa própria força nos levará ao desespero.
Quando Paulo enfatiza aqui o termo “carne”, ele não se refere a algum comportamento pecaminoso. A lei não é pecado; antes, a lei revela a nossa pecaminosidade. Quando a Bíblia fala de carne, geralmente ela trata da oposição entre a carne e o espírito. Muitas vezes interpretamos a ideia de “carne” como pecado, imoralidade, adultério, prostituição, mas aqui não se trata de pecado e sim de algo que queremos alcançar na carne por meio da nossa própria força. A carne é a essência do “eu”: eu preciso fazer, eu preciso cumprir a lei, eu preciso orar cinco vezes por dia etc. Confiar na carne busca uma redenção por obras – e nesse caso estaríamos perdidos. Quando vivemos no Espírito, não nos orgulhamos do nosso próprio desempenho, mas tão somente de Cristo, e é exatamente isso que Paulo faz nos versículos seguintes, em que ele mostra que, se um judeu pudesse orgulhar-se de tudo aquilo que conseguiu por meio da carne, então esse judeu seria ele mesmo. Mas Paulo considera tudo isso como perda, como lixo. Para Paulo, Jesus Cristo tornou-se tudo.
“Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie. Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nós as praticarmos” (Ef 2.8-10).